segunda-feira, 18 de outubro de 2021

GAROTA DA SERRA

"Olha que coisa mais linda mais cheia de graça
É ela menina que vem que passa
Num doce balanço caminho do mar"

Os versos da canção famosa afloraram naturalmente quando, entre um gole e outro do chopinho gelado, notei a menina que naquela tarde  de verão caminhava distraidamente no calçadão da Atlântica, pela hora certamente não a caminho do mar. Pequena e bonita, cabelos cacheados, hesitou antes de atravessar a rua na esquina, olhou para o lado à procura de carros, e por um átimo nossos olhares se encontraram. Clique! 

Mais de quatro décadas se passaram, o mundo mudou, vivemos uma história bacana de companheirismo, aventuras e amor, ganhamos filhos, netos e bisnetos e a menina, que trocou o mar pela montanha, continua a brindar o mundo com sua graça, agora madura.

Menina valente, guerreira potente, está de volta após um sofrido período em que sua resiliência foi testada e aprovada; recebida com muito amor e carinho, juntos percorreremos o caminho para os melhores anos do resto de nossas vidas.

"Ah, se ela soubesse
Que quando ela passa
O mundo sorrindo se enche de graça
E fica mais lindo por causa do amor." 


 


terça-feira, 15 de junho de 2021

MONTAGU'S

 John Montagu (1718-1792)4° Conde de Sandwich e Primeiro Lorde do Almirantado da Marinha Britânica é usualmente apontado como inventor do sanduiche - uma fatia de salame entre dois pedaços de pão - a que recorria como alimento durante intermináveis partidas de carteado. Antes dele, outro Montagu se notabilizou por motivo bem diferente: Lady Mary Pierrepont (1689-1762) uma aristocrata garota inglesa, casou-se com Sir Edward Wortley Montagu, que veio a ser nomeado embaixador junto ao Império Otomano.  Apesar do sobrenome comum, não foram parentes, mas é fato que Lady Montagu é referida como precursora da vacinação por defender, em plena epidemia mundial de varíola o procedimento, comum em Constantinopla, de inocular na pele sadia o vírus das pústulas como preventivo à doença. A prática era a bisavó da vacinação nos moldes atuais, mas eles não sabiam, e talvez por isso, funcionava. 

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Montagu's é também o nome de um boteco típico de Copacabana, que frequentava eventualmente. Formalmente é uma sanduicheria, em homenagem ao patrono, mas na prática é uma cervejaria, oferecendo à clientela sedenta uma qualificada variedade de rótulos nacionais e importados, que harmonizam com uma requintada carta de petiscos e refeições rápidas. Está localizado em uma movimentada esquina de duas ruas tradicionais do bairro, sua área interna é mínima, mas aconchegante, e como também é usual no ramo, divide um puxadinho na calçada com um enorme banca de jornal e outras coisas, que até vende jornais. Na falta das bandeiras e marcos possessórios dos tempos do Almirantado, a ocupação da área pública é confirmada com mesinhas e barris de chope que servem de mesinhas. Completa o cenário caótico uma barulhenta feira livre na praça em frente, liderada por uma grande barraca de venda de caldo de cana e pasteis gordurosos, imodestamente autodenominada "O Gostosão".
Em tempos de pandemia e isolamento social, lockdowns e outras inconveniências, é preciso aliviar restrições muito rígidas e convenções sociais reducionistas, sob pena de colapso mental. Vez por outra fuja delas, vá a um barzinho da moda, coma e beba dentro dos protocolos sanitários e se divirta. O experimento do conde Montagu extravasou de sua cozinha e viralizou, gerando apetitosas cepas e variantes recebidas mundialmente com aplausos pelos clientes das casas especializadas. A iniciativa de Lady Montagu foi aperfeiçoada e finalmente permitiu que se desfrute com segurança da criação do seu homônimo. E o barzinho da hora honra o nome e os legados, aglomerando com segurança os famintos com os sedentos.


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segunda-feira, 7 de junho de 2021

SINFONIA DO ADEUS

 O cenário é caótico e característico de algumas ruas internas de Copacabana, onde um clássico boteco dito pé-sujo, de esquina e com diminuta área interna, disputa a já estreita calçada com uma grande banca de jornais, dessas que vendem de tudo, até mesmo jornais. No puxadinho externo espremem-se mesinhas e barris de chope servindo de mesinhas, outra tradição do ramo, enquanto na esquina em frente uma formigante e ruidosa feira livre é liderada por concorrida barraca de venda de caldo de cana e pasteis gordurosos, imodestamente denominada "O Gostosão".

A clientela dominical também é tradicional e fiel, constituída por pessoas de meia ou muita idade que a sós ou em pequenos grupos bebem moderadamente e beliscam os sempre muito bons e generosos petiscos da casa. Todos se conhecem de vista, mas não se falam, é a regra não escrita seguida pelos solitários e introvertidos fregueses perdidos em seus pensamentos, enquanto da rua vem o som vibrante de uma sinfonia urbana em que o ruidoso allegro con brio composto pelo barulho do trânsito, conversas dos passantes a caminho da praia e pregões dos feirantes é a síntese de todos os demais movimentos.

 Antes do confinamento determinado pela pandemia frequentei eventualmente esse discreto refúgio sócio-etílico da terceira idade, onde me distraía observando o comportamento das pessoas e fazendo anotações mentais enquanto saboreava chope premium escoltado por um geladíssimo shot de Steinhaeger . Passado esse longo e indesejado período pandêmico-sabático, devidamente vacinado e com as cautelas de praxe, retornei ao local e a ruidosa bagunça local soou aos meus ouvidos como uma fanfarra. 

Pensei ter reencontrado as pessoas de sempre, animadas pela sinfonia monofônica habitual, mas dei por falta de dois frequentadores interessantes, um senhor baixo e um pouco obeso, de rosto muito vermelho, que se apoiava com dificuldade numa bengala, e um outro muito alto e magro, sempre de chapéu panamá, que usava anacrônicos suspensórios e caminhava penosamente e a passos curtos com o auxílio de um andador. Nos meus devaneios eu costumava referenciá-los como o Gordo e o Magro, e secretamente admirava suas lutas solitárias contra o que parecia ser uma limitação irreversível. Soube pelos garçons que tinham definitivamente fechado as contas, ao som indistinto do que agora me pareceu uma sinfonia do adeus.



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segunda-feira, 24 de maio de 2021

NASCI


Nasci no bairro carioca da Tijuca, onde também nasceram meus pai, avô, bisavô e filha - cinco gerações desde 1830, quando chegou ao Brasil o pai do meu bisavô, que era português.  Meu
 nascimento foi participado de forma bastante criativa, mediante um cartão contendo uma única palavra - Nasci - além do nome e endereço.   No decurso desta minha já longa existência sempre alimentei divertidos devaneios sobre as interpretações que esse inusitado recado na primeira pessoa, afirmativo, curto e objetivo teria suscitado aos contemporâneos, se teria sido percebido como uma inocente e inusitada comunicação, ou uma espécie de advertência velada à humanidade do tipo "nasci, vocês vão ter que me engolir"...

Há inúmeras  alternativas e interpretações para o que possa ser considerado uma vida bem vivida,  desde aquelas iluminadas pelo brilho do sucesso que se mede em dinheiro, vinho, mulheres e música às indigentes que se escoam opacas e sem perspectivas na trágica zona cinzenta onde prevalecem sangue, suor e lágrimas - e seus derivados. Entre essas situações limites caminha a maioria da humanidade, lutando para fugir da mediocridade, vencer preconceitos, superar desafios.

Fazendo um retrospecto de minha trajetória, reconheço ter vivido múltiplas vidas, sobrepostas umas, conflitantes outras, complementares algumas, traumáticas umas poucas, mas  fechado o balanço final o saldo me parece amplamente favorável. Reconheço também ter contado algumas vezes com a providencial ajuda do destino, que me apresentou às pessoas certas nos momentos incertos. Reconheço, ainda, que deveria agradecer à humanidade em geral por relevar aquela pretensa presunção inicial descabida e concordar em substituí-la pela humildade com que agradeço a 
cordial acolhida. Ao final, concluo, não cheguei a ser engolido nem repelido - fui assimilado.

quarta-feira, 5 de maio de 2021

MÃES, AVÓS, BISAVÓS

 


Nem sempre lembramos, mas além de nossas mães outras figuras femininas importantes as antecederam, nos acolheram e guiaram ao longo dos tempos - as nossas avós e bisavós. Fieis ao preceito bíblico do crescei e multiplicai-vos, as minhas avós e bisavós tiveram muitos filhos mas mantiveram uma reserva de mercado de carinho e amor exclusiva para seus netos e bisnetos, como mostram as imagens, que falam melhor que as palavras:
- Maria Emília, a bisavó paterna, conhecida como Sinhá Zoca, era uma figura austera, sempre de preto e de chapéu, teve dez filhos e inúmeros descendentes, antes de chegar a minha vez. Já viúva, convivemos por sete anos, dos quais uns três mais estreitamente, o suficiente para conhecer melhor e reverenciar cada vez mais a sua memória. Viveu por oitenta e cinco anos.
- Delphina, a Vó Pequenina, mãe do meu pai e de duas tias, tinha verdadeira paixão pelos netos mas saúde frágil. Enfrentou com rara coragem diversas internações hospitalares e sofreu muito com a perda do único neto de uma das filhas por doença infantil que evoluiu mal. Foi uma lutadora, que viveu sessenta e nove anos.
- Francisca, a Vó Chiquinha, foi mãe de nove filhos, era engraçada e adorada pelos muitos netos. Durante a crise geral gerada pela Segunda Guerra Mundial acolheu em sua casa, um sobradão de vários quartos em Vila Isabel, filhos e netos que estavam com as famílias e finanças desestruturadas, antecipando o conceito atual de coletivo num alegre festival de carências. Nos deixou aos 86 anos.
- Ironette, a Dona Irô, minha linda mãe amorosa de quatro filhos, sempre alegre, prestativa e atualizada despediu-se tranquilamente aos oitenta anos, deixando saudosos família e amigos. Obrigado, meninas, por terem dado colo e carinho àquele garotinho mimado da Tijuca!


  Maria Emília Guedes Paula Freitas, Sinhá Zoca, bisavó paterna


Delphina de Abreu Paula Freitas, Pequenina, avó paterna
 
 
Francisca Jorge Rogério, Chiquinha, avó materna 

 
Ironette Rogério Luis Paulafreitas, mãe