A casa era quase centenária, estreita e comprida,
com janelas na fachada que abriam diretamente para a calçada da rua, como usual na época de
sua construção. Era térrea em sua maior parte mas assobradada no terço do meio, com quatro
quartos sobre o grande salão de refeições, a que se chegava por um longo corredor
formado por uma parede cega à esquerda e a outra com portas voltadas para três salas sucessivas - duas de visitas e um escritório -, interligadas internamente por vãos em arco emoldurados em
madeira trabalhada. No corredor e no salão meias paredes eram revestidas por
lindos azulejos portugueses, em alto relevo, exibindo rosas desabrochadas no topo de esguios caules escoltados por folhas verdes. Todos os
ambientes sociais, corredor, salas e salão tinham pé-direito duplo e assoalhos e tetos forrados com tábuas corridas, esses últimos ornados em toda a volta por uma delicada sanca rendada de madeira, que garantia a renovação do ar e no verão mantinha no ambiente um clima de
agradável frescor. Suas grandes portas internas abriam para um pátio ladrilhado, que precedia o quintal propriamente dito, de
terra batida; nesse terreiro, como era chamado, havia um quarto ao fundo misto
de depósito e oficina do Avô, onde ferramentas cuidadosamente dispostas nas
portas e gavetas de um grande armário e intrigantes utensílios,
equipamentos e potes de produtos químicos remanescentes da sua antiga
farmácia de manipulação, reunidos numa estante aberta, fascinavam aquele
menino. Em um dos cantos, cobertos de
poeira, jaziam dois misteriosos caixotes sempre fechados cujo conteúdo o Avô,
quando uma vez inquirido a respeito, disse apenas serem “coisas". Nunca
mais perguntei ...
*
Moramos alguns anos
nessa casa, que pertencera de início a meu bisavô. Éramos uma típica
família tijucana feliz, alegre e barulhenta, com quatro irmãos, dois
cachorros, um papagaio e muitos amigos sempre presentes. Nela tive um
quarto só meu, o sonho de qualquer garoto naquela idade. Ali
comemorei o primeiro emprego e o posterior
ingresso no Banco do Brasil, consumei meu casamento e festejei o
nascimento da filha. Quando as irmãs também casaram e
mudaram, sua amplitude potencializou a sensação de esvaziamento e
solidão que pesava sobre meus pais, e eles retornaram ao seu
apartamento menor; o Avô, então, voltou
morar lá com a segunda esposa, fechando algumas salas e o sobrado.
Médico e farmacêutico, ele dedicava
suas horas vagas ao serviço social voluntário vinculado ao Hospital São
Vicente de Paulo, onde trabalhou até adoecer gravemente. Logo após completar
noventa anos a doença entrou em fase terminal e tivemos um último e emocionado encontro, quando rememorou alegremente suas peripécias pilotando motos, uma das paixões
da sua juventude, e as nossas idas de carro a Teresópolis para visitar uma tia. Rimos
muito, espantando as dores. No dia seguinte foi internado e não mais se
recuperou.
A casa foi vendida e seria demolida e era preciso desocupá-la, o que incluía esvaziar o quartinho dos fundos, coletar as ferramentas e o que mais fosse aproveitável e, finalmente, abrir os caixotes misteriosos. Com cuidado abrimos um deles e encontramos, em meio a uma proteção de jornais velhos e já esfarelados algumas louças e um finíssimo, lindo e completo aparelho de chá de porcelana chinesa. Eram algumas das tais coisas. Na segunda caixa havia algumas peças de vestuário, fotos, e objetos pessoais de toalete e adorno de minha Avó, falecida há décadas e zelosamente guardadas desde então. Eram as outras coisas.
A casa foi vendida e seria demolida e era preciso desocupá-la, o que incluía esvaziar o quartinho dos fundos, coletar as ferramentas e o que mais fosse aproveitável e, finalmente, abrir os caixotes misteriosos. Com cuidado abrimos um deles e encontramos, em meio a uma proteção de jornais velhos e já esfarelados algumas louças e um finíssimo, lindo e completo aparelho de chá de porcelana chinesa. Eram algumas das tais coisas. Na segunda caixa havia algumas peças de vestuário, fotos, e objetos pessoais de toalete e adorno de minha Avó, falecida há décadas e zelosamente guardadas desde então. Eram as outras coisas.
*
Antes da demolição se consumar consegui
salvar alguns daqueles azulejos que sempre me fascinaram, para aplicá-los na
decoração da residência que então possuía na Ilha do Governador.
As transplantadas rosas, silenciosas testemunhas e cúmplices de
tantos momentos felizes de nossa família, refloriram simbolicamente e
continuaram a alegrar outras gerações.
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Pequenina e Júlio César
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Um comentário:
Amigo Luis.
Lendo sobre a minuciosa descrição que você faz da "Casa do seu Avô", é como se eu estivesse vendo a moradia.
Devia, realmente, ser linda, principalmente pelo que emanava de seus habitantes.
Quanto ao Hospital S. V. de Paulo (Rua Dr. Satamini, 333 - Tijuca), conheço-o muito bem, pois, antes de vir para Teresópolis, era lá que eu tinha minhas consultas.
O Sr. seu avô, deve, realmente, ter sido uma pessoa ADMIRÁVEL e, pelo que te conheço, você tem MUITO dele.
Parabéns, e continue a nos brindar com narrativas tão explêndidas.
Grande abraço deste seu admirador:
Getulio.
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