segunda-feira, 29 de agosto de 2011

Paulette


Corria o ano sem graça de 1968, o país seguia resignado seu destino sob o comando de um marechal gaúcho, nosso banco era comandado por um político gaúcho e sua recém criada Diretoria do Pessoal tinha como titular outro gaúcho, funcionário de carreira aposentado e concunhado do ditador da hora. Foi a esse cenário extremamente conservador que fui agregado como assessor técnico da diretoria, por indicação do meu chefe de então - mais um gaúcho!  Como carioca da Tijuca, flamenguista e liberal eu era um estranho no ninho, e escapei por pouco de vestir bombachas e bombear chimarrão.


Alguns meses antes  houve um concurso público de âmbito nacional para ingresso no banco e o período de divulgação dos resultados e encerramento dos trâmites finais para nomeação dos aprovados coincidiu com minha chegada à Diretoria. Segundo as regras amplamente divulgadas, o  aproveitamento dos candidatos e sua distribuição pelas diferentes regiões do país obedeceria à ordem de classificação.Tudo sempre funcionou assim, sem sobressaltos, com um possível arranjo sutil aqui e outro acolá, até que o imprevisto aconteceu, de maneira nada discreta e muito impactante para os costumes e padrões morais da gauchada da época: aprovado nas primeiras colocações, o que lhe assegurava a nomeação para um bom lugar no Rio de Janeiro destacava-se, de forma inédita, um assumido travesti!


Seu "nome social" era Paulette.

Paulette era um obstinado, em cruzada pessoal pela aceitação de uma opção sexual totalmente fora de contexto na época. Tinha cabelos longos e oxigenados crescidos até os ombros, usava discretos figurinos e maquiagem femininos e era bem apessoado. Mas despertava muita curiosidade, e a simples perspectiva de ter tal figura integrando os conservadores quadros funcionais do banco no atendimento ao público deixava todo o grupo dirigente perplexo e incomodado. Decidiram convocá-lo para uma entrevista pessoal claramente destinada a induzir  sua desistência, confrontando-o com a hipótese de ser localizado em alguma remota cidade interiorana onde exteriorizar sua sexualidade seria insustentável, ou até de ser desclassificado por "desvio de conduta". Inabalável na defesa dos seus direitos e exigindo o cumprimento das normas que lhe garantiam permanência no Rio, ele venceu, mas o preconceito do banco prevaleceu: foi nomeado e localizado na cidade do Rio de Janeiro, como exigia e tinha direito, mas num obscuro setor interno de algum órgão remoto, praticamente segregado. De tal forma que nunca mais ouvi falar nele.  


Alguns anos mais tarde fui incumbido da reestruturação de um departamento administrativo do banco, para inseri-lo no incipiente programa geral de informatização dos serviços bancários. Estávamos então entrando na era dos mainframes, dos PCs e seus monitores de fósforo, do DOS, e da programação feita a mão em grandes folhas de papel quadriculado - um avanço notável, considerando que os ícones de modernidade da época ainda eram as máquinas de escrever elétricas. No decorrer dos trabalhos de campo, a equipe deparou-se um estranho setor onde os funcionários trabalhavam por tarefa em uma sala quase escondida, fora do horário normal de expediente, encarregados de extrair alguns dados estatísticos repetitivos de determinados documentos  e datilografá-los em papel para atendimento de consultas externas. Chegavam antes do horário do expediente normal, cumpriam suas metas e desapareciam. Todos eram, de certa forma e sob a ótica administrativa classificados como  problemáticos, e não fosse pela produção realmente oferecida, poderiam ser considerados "fantasmas". Como essas tarefas eram simples e repetitivas, facilmente informatizáveis em diferentes etapas do processamento, decidiu-se extinguir o serviço e realocar os funcionários em outros setores, compatibilizando na medida do possível suas conveniências e problemas pessoais com o interesse da administração. Os integrantes do grupo foram então convocados a uma entrevista pessoal para apresentar seus  pleitos, e foi assim que reencontrei... Paulette!

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Esses fatos aconteceram há mais de quatro décadas, em um ambiente totalmente hostil que refletia o comportamento homofóbico da época. Infelizmente essa história não deve ter tido um final muito feliz pois encaminhado ao departamento do Pessoal para ser relocalizado, Paulette sumiu de novo!...


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Um comentário:

Edô Pessoa disse...

Oi Luis! Meus comentários sumiram...
Adoro seu blog,sempre dou uma olhadinha aqui!
Gosto das "coincidências" q aqui encontro c/ partes da minha vida! Acredite: te conheço faz muitos anos!
Abçs.