terça-feira, 8 de março de 2011

A velhinha na janela


 

Pela manhã eu havia internado minha Mãe no hospital para ser submetida a uma cirurgia de certa urgência.  Ela estava alegre e confiante como sempre, parecendo desconhecer ou desdenhar da gravidade do seu caso, mas naquela mesma noite fomos avisados que o seu estado de saúde  se agravara. A cirurgia fora abortada devido a duas paradas cardíacas ocorridas durante a anestesia, ela estava então em coma induzido, os médicos sintomaticamente liberaram as visitas mesmo à noite, e um clima de despedida estava implícito no ar.
 
Embora já tenha enfrentado algumas vezes essa situação extrema, sempre me senti inibido pelas circunstâncias e nunca soube exatamente como proceder. Conheço relatos sobre os doentes escutarem e entenderem o que se fala, mas as palavras não me saem. Entrei na ampla UTI e encontrei minha mãe em companhia de outros pacientes graves, uns dormindo ou sedados como ela, outros alertas mas inertes.  Ela estava serena e bonita como sempre, parecendo dormir tranquilamente. Mudo e emocionado segurei e apertei sua mão por alguns minutos, sem sentir qualquer reação, beijei-a e fui chorar lá fora.

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Quando éramos crianças, nossa Mãe eventualmente dedilhava um violão e com sua voz pequena porém afinadinha, cantava para nós modinhas antigas, cantigas de roda e canções folclóricas. Crescemos, casamos, nos dispersamos e nunca mais a ouvi cantar. Alguns anos depois estávamos todos reunidos de novo, morando à sua volta em Copacabana. Meu Pai morreu, e quando ela se recuperou do baque passou a cultivar um novo hábito, coerente com sua atenção a tudo que se passava no mundo: lia o jornal atentamente e marcava artigos, notícias ou trechos de textos que tinham despertado a sua atenção, para reler em voz alta e comentar comigo nas visitas quase diárias que lhe fazia.  Depois de algum tempo entendi que era uma forma de prolongar nosso convívio, pois sempre que passava lá era rapidamente, apenas para vê-la.

Ao final desses encontros ela ficava na janela esperando até me ver sair do prédio,  sorrindo e acenando, visivelmente feliz. Eu caminhava até  final da rua e antes de dobrar a esquina olhava de novo e lá continuava ela, sorrindo e acenando.

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Sempre que caminho agora por aquela rua curta e estreita, atulhada de carros, olho instintivamente para aquela janela vazia, e triste apresso o passo. Antes de dobrar a esquina, porém, não resisto e olho de novo, e lá está ela sorridente a acenar - a velhinha na janela. 





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Este texto despertou em alguns leitores lembranças de suas próprias infâncias e respectivos relacionamentos maternos, com um inesperado componente comum a todos - a música, o fio condutor de todas essas recordações. Os emocionados e emocionantes comentários publicados merecem ser lidos, por tudo quanto significam em termos de agradecimento e reconhecimento a essas figuras ímpares, nossas Mães!



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