sábado, 19 de março de 2011

A casa do meu Avô


A casa era quase centenária, estreita e comprida, com janelas na fachada que abriam diretamente para a calçada da rua, como usual na época de sua construção. Era térrea em sua maior parte mas assobradada no terço do meio, com quatro quartos sobre o grande salão de refeições, a que se chegava por um longo corredor formado por uma parede cega à esquerda e a outra com portas voltadas para três salas sucessivas - duas de visitas e um escritório -, interligadas  internamente por vãos em arco emoldurados em madeira trabalhada. No corredor e no salão meias paredes eram revestidas por lindos azulejos portugueses, em alto relevo, exibindo rosas desabrochadas  no topo de esguios caules escoltados por folhas verdes. Todos os ambientes sociais, corredor, salas e salão tinham pé-direito duplo e assoalhos e tetos forrados com tábuas corridas, esses últimos ornados em toda a volta por uma delicada sanca rendada de madeira, que garantia a renovação do ar e no verão mantinha no ambiente um clima de agradável frescor.  Suas grandes portas internas abriam para um pátio ladrilhado, que precedia o quintal propriamente dito, de terra batida; nesse terreiro, como era chamado, havia um quarto ao fundo misto de depósito e oficina do Avô, onde ferramentas cuidadosamente dispostas nas portas e gavetas de um grande armário e intrigantes utensílios, equipamentos e potes de produtos químicos remanescentes da sua antiga farmácia de manipulação, reunidos numa estante aberta, fascinavam aquele menino. Em um dos cantos, cobertos de poeira, jaziam dois misteriosos caixotes sempre fechados cujo conteúdo o Avô, quando uma vez inquirido a respeito, disse apenas serem “coisas". Nunca mais perguntei ...

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Moramos alguns anos  nessa casa, que pertencera de início a meu bisavô.  Éramos uma típica família tijucana feliz, alegre e barulhenta, com quatro irmãos, dois cachorros, um papagaio e muitos amigos sempre presentes. Nela tive um quarto só meu, o sonho de qualquer garoto naquela idade. Ali comemorei o primeiro emprego e o posterior ingresso no Banco do Brasil, consumei meu casamento e festejei o nascimento da filha. Quando as irmãs também casaram e mudaram, sua amplitude potencializou a sensação de esvaziamento e solidão que pesava sobre meus pais, e eles retornaram ao seu apartamento menor;  o Avô, então, voltou morar lá com a segunda esposa, fechando algumas salas e o sobrado.

Médico e farmacêutico, ele dedicava suas horas vagas ao serviço social  voluntário vinculado ao Hospital São Vicente de Paulo, onde trabalhou até adoecer gravemente. Logo após completar noventa anos a doença entrou em fase terminal e tivemos um último e emocionado encontro, quando rememorou alegremente suas peripécias pilotando motos, uma das paixões da sua juventude, e as nossas idas de carro a Teresópolis para visitar uma tia. Rimos muito, espantando as dores. No dia seguinte foi internado e não mais se recuperou.  

A casa foi vendida e seria demolida e era preciso desocupá-la, o que
 incluía esvaziar o quartinho dos fundos, coletar as ferramentas e o que mais fosse aproveitável e, finalmente, abrir os caixotes misteriosos. Com cuidado abrimos um deles e encontramos, em meio a uma proteção de jornais velhos e já esfarelados algumas louças e um finíssimo, lindo e completo aparelho de chá de porcelana chinesa. Eram algumas das tais coisas. Na segunda caixa havia algumas peças de vestuário, fotos, e objetos pessoais de toalete e adorno de minha Avó, falecida há décadas e zelosamente guardadas desde então. Eram as outras coisas.

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Antes da demolição se consumar consegui salvar alguns daqueles azulejos que sempre me fascinaram, para aplicá-los na decoração da residência que então possuía na Ilha do Governador. As transplantadas rosas, silenciosas testemunhas e cúmplices de tantos momentos felizes de nossa família, refloriram simbolicamente e continuaram a alegrar outras gerações.   

Pequenina e Júlio César


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