sábado, 24 de dezembro de 2016

De sinos e atabaques

As coisas mudam, diz o chavão, e geralmente para pior, emenda o povão. Os sinos da igreja aqui ao lado trocaram o  alto das torres por amplificadores e caixas de som, e os tambores da umbanda que rufavam na praia aqui em frente nas passagens de ano, marcando o ritmo dos pontos cantados, agora o fazem na véspera. A Missa do Galo é agora celebrada com as galinhas e todos se recolhem mais cedo para evitar encontros perigosos com as raposas que rondam as igrejas, Na praia a multidão dos sem culto invadiu a areia dos terreiros improdutivos e ocupou todos os espaços, inviabilizando aqueles lindos rituais d’outrora.
Para mim, perdeu a graça. Gostava - e ainda gosto - de ouvir os sinos e de imaginar os sineiros agarrados às cordas, subindo e descendo alegremente na cadência dos badalos. E de sentir no rosto - e sobretudo no nariz - o afago quase imperceptível e o aroma marcante da fumaça daqueles charutos fedorentos, companheiros inseparáveis dos passes de descarrego com que nos brindavam os praticantes dos rituais da umbanda.
E até aquela tradicional cascata de fogos com que o hotel famoso encerrava o foguetório secou, levando junto a fonte de tanto deslumbramento. Vida que segue, atingimos um público crescente e elevado número de espetáculos pirotécnicos e artísticos até que os acontecimentos de 2020 impuseram um oportuno freio de arrumação, que deve ser aproveitado para repensar a festa em todos os seus aspectos.
E que venham muitos anos mais de vida alegre e produtiva, com saúde e disposição, para pesquisarmos a respeito e compartilharmos com você. 
Feliz Natal e Bom Ano Novo para todos nós, sempre!  

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segunda-feira, 19 de dezembro de 2016

Minha Infância Querida - o Grajaú

Mudamos para o tranquilo bairro do Grajaú em 1940, ocupando uma casa geminada e assobradada de esquina, com jardim e quintal, quando o mundo estava às voltas com a Segunda Guerra Mundial e faltava tudo que era importado, a começar pela gasolina. Meu Pai tinha um carro que era sua paixão ostensiva e a minha admiração contida, um cupê Chevrolet 1934, ano do meu nascimento. Quando a venda de gasolina foi totalmente proibida, e a única alternativa de combustível passou a ser o gasogênio, que era caro, ineficiente e desfigurava os carros, o lustroso Chevrolet negro foi colocado sobre cavaletes e passou a ser alimentado literalmente a conta-gotas. Para que o motor não se deteriorasse, o Pai comprava gasolina no mercado negro, um litro caríssimo de cada vez, e enquanto a pingava cuidadosa e avaramente diretamente no carburador eu, motorista auxiliar improvisado, acionava o para mim longínquo pedal de partida, todo espichado na beira do banco e pendurado no volante, sentindo-me o sucessor do Fangio, o piloto celebridade de então. Aqueles engenhosos momentos de interação, parceria e cumplicidade de pai e filho, embora fugazes, sedimentaram nossa amizade e estimularam meu apego aos carros.

---------------- O bairro era considerado de classe média emergente, mas já apresentava nos morros focos inquietantes do que hoje se chama eufemisticamente de comunidades, embora não houvesse na época qualquer evidência de criminalidade exacerbada, ou uso aberto de drogas. Eram apenas aglomerados esparsos e rarefeitos de gente paupérrima e sem perspectivas, e a local escola municipal Duque de Caxias era o centro democrático de convergência e socialização de pais e garotada de todas as classes sociais e etnias. Fui matriculado no curso Primário e mais tarde, no dia da festa do patrono, escolhido para fazer a saudação de praxe, numa redação a ser por mim escrita e lida com toda a pompa e circunstância que a data suscitava. Caprichei no rascunho do texto feito a lápis, que foi aprovado pela professora, e reescrevi tudo com a caneta tinteiro Parker 51 do meu Pai, abastecida com tinta lavável, um ícone de sofisticação numa época ainda sem Bics e similares, em que camisas e ternos manchados de tinta eram uma constante. Pouco antes da festa chovia muito, coloquei o texto dobrado no bolso da jaqueta, peguei um guarda-chuva e saí de casa para a escola sozinho, como fazia questão minha Mãe. No caminho fui abordado por um menino do meu porte que tentou arrebatar-me o guarda-chuva, saí vitorioso no puxa-empurra da disputa mas fiquei completamente encharcado. Cheguei atrasado à Escola e fui mandado direto para o palco da festa, sob os olhares recriminatórios das mestras, mas ao tirar o papel do bolso para ler a saudação constatei, desesperado, que estava bem molhado e pior, que a badalada tinta lavável realmente funcionava...

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O Brasil entrou na guerra contra a Alemanha, quando o torpedeamento de navios mercantes nossos desencadeou protestos populares seguidos de insana violência contra cidadãos e empresas de origem germânica. Vândalos descontrolados depredaram lojas por conta do nome pretensamente alemão e agrediram nas ruas pessoas sem culpa por conta de sua aparência supostamente germânica. O terreno ocupado pelas nossas casas geminadas era contíguo ao de um imóvel alugado por uma família alemã, um casal com dois filhos, sendo um deles um menino da minha idade com quem eventualmente brincava. Logo a residência foi atacada a pedradas por grupos que se revezaram por alguns dias na agressão, e apesar de um policial de plantão no portão, a família ficou acuada e impedida de sair até para comprar comida. Percebendo o problema e revoltada com a gratuidade da violência, minha Mãe decidiu dividir nossas carências com as crianças apavoradas e famintas, e reuniu num pacote todos os mantimentos de que podia dispor. Fomos juntos até a casa vizinha e enquanto ela conversava com o guarda plantonista entrei pelo quintal, sentindo-me observado através das venezianas, e deixei o pacote discretamente na degrau da porta dos fundos, a da cozinha. Ao me afastar ainda pude ver de relance uma fresta se abrir e mãos ávidas recolherem o presente. E essa foi minha primeira lição prática, evocando Pessoa, que sempre há tempo e condição para ajudar o próximo, quando a alma não é pequena. ---------------- Naqueles tempos difíceis, as doenças da infância hoje erradicadas eram uma ameaça que preocupava o mundo com suas sequelas. Não havia vacinas nem antibióticos, e os surtos de sarampo, catapora, caxumba e coqueluche se sucediam nas escolas, assim como as repetitivas infestações de piolhos. Minha Mãe acreditava ser melhor todos contrairmos logo essas enfermidades, na infância, evitando uma contaminação tardia e segmentada, de consequências imprevisíveis. E tratar de três ao mesmo tempo, era sempre mais prático que um de cada vez. Então, sempre que alguma criança apresentava os sintomas de alguma dessas viroses, e para horror das mães nossas amigas, éramos estimulados a visitar o paciente. Como resultado contraímos solidários e na devida época, eu e minhas irmãs, todas essas enfermidades de forma branda e sem maiores sequelas, o que talvez tenha reforçado nossas defesas naturais e explique porque mais tarde desconhecemos problemas graves de saúde. Já os piolhos... ----------------- Na casa da esquina oposta à nossa, residia a família de um oficial do Exército que, como era comum naquela época, estava ausente servindo em algum quartel distante. O casal tinha um único filho, um garoto talvez um ano ou dois mais velho do que eu, com quem também me relacionava, inclusive frequentando a casa para jogar bola no quintal com outros amigos. Numa dessas ocasiões, e aproveitando a ausência eventual da mãe, o amiguinho resolveu exibir a arma que o pai deixava com a esposa, para segurança da família em suas ausências. Era uma pequena pistola Beretta .22, vim a saber mais tarde, e estava carregada. Fiquei apavorado quando ele começou a brincar com a arma, inclusive apontando na minha direção, e me refugiei atrás da porta aberta de um armário no quarto da mãe dele o que me protegeu do disparo acidental que, fatalmente, acabou acontecendo. Era um móvel sólido, o pequeno projétil ficou encravado na madeira maciça da porta e enquanto ele se recuperava do susto, corri para casa. À noite, ao saber do ocorrido, meu Pai foi conversar com a senhora, que não o recebeu bem, atitude idêntica à do marido, quando apareceu semanas depois. Foi ruim, e nossa amizade acabou literalmente a bala. -------------------- Nossa passagem pelo Grajaú acabou de maneira inglória, com a mesma guerra que afligiu os vizinhos alemãs afetando a estabilidade financeira do Pai. Convocado para o serviço ativo no Exército, onde o soldo de tenente era fração dos seus interrompidos ganhos como professor e advogado, precisamos abrir mão da casa alugada e do carro e nos refugiamos em um quarto na lotada casa de minha Avó materna, que já abrigava outros tios e primos tornados sem teto por razões semelhantes. Foi por pouco tempo, e foi um período marcante para nós, crianças, mas o que se prenunciava problemático acabou dando samba, afinal estávamos agora na Vila Isabel, terra de Noel Rosa.
Mas essa é outra estória, a ser contada a seu tempo.

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