domingo, 30 de abril de 2017

Memórias: Querida Mamãe

Minha mãe foi uma moça muito bonita, de traços finos, pele muito clara e porte franzino que abrigava um grande coração, valente e generoso. Enfrentou e venceu com galhardia e bom humor as provações por que passamos durante a Segunda Guerra Mundial, quando meu pai foi convocado pelo Exército, ficou seriamente doente e ela assumiu o comando da família na dor, como assentiu em seus votos matrimoniais. E ainda encontrava ânimo para ajudar necessitados. E na hora da sua despedida aceitou os fatos com serenidade, sem queixas ou amargor, e talvez por isso tenha merecido a benção de um final tranquilo e indolor. ---------------- Nossa infância e juventude transcorreram num mundo em que havia doenças e inexistiam vacinas. Sarampo, caxumba, catapora e outras afecções menos comuns eram consideradas potencialmente perigosas e seus surtos alarmavam as mães. Menos a nossa, que tinha lá suas razões para acreditar que era melhor ficarmos doentes enquanto crianças a correr um risco maior com mais idade, E assim, de uma forma ou de outra, e para horror de outras famílias, todos contraímos e vencemos essas doenças ao mesmo tempo, na base da emblemática canja de galinha - o que não deixava de ser gratificante naqueles tempos bicudos. ----------------- Na casa ao lado morava uma família alemã, um casal com duas crianças da nossa idade. Quando houve o torpedeamento de navios brasileiros e o Brasil declarou guerra à Alemanha, aconteceu uma insana e geral caça às bruxas e a residência vizinha foi cercada e apedrejada por manifestantes descontrolados. A família permaneceu trancada lá por alguns dias, até que fosse removida em segurança pelas autoridades, e enquanto isso certamente passava aflições e, especialmente, fome. Preocupada com as crianças, no terceiro dia de cerco mamãe juntou num grande farnel tudo o que havia de mantimentos disponíveis em casa, e desafiando as caras feias dos manifestantes remanescentes foi comigo oferecer a ajuda aos desesperados alemães, que avidamente a recolheram por uma fresta da porta. Um gesto corajoso e generoso cuja dimensão na hora não avaliei, mas que nunca esqueci. ---------------- Após a morte do nosso pai minha irmã do meio, também viúva, foi morar com ela para lhe fazer companhia, e o que parecia improvável felizmente aconteceu - deu tudo certo, na base de polos contrários se atraírem. Ainda bem. Ela se sentiu estimulada e venceu a natural tristeza, voltando a exibir satisfação em caprichar no seu sempre discreto mas bem resolvido figurino; tornou-se uma velhinha bonita, saudável e alegre, que gostava de passear por Copacabana. Certa feita saí com ela, e de mãos dadas na estreita calçada da tradicional Flora Santa Clara cruzamos com duas senhoras que a conheciam. Uma delas olhou bem para mim, e soltou o comentário maldoso - "Aí, hein, Dona Irô...", no que ela de pronto fulminou a fofoqueira com um firme - "O que é isso, Dona Fulana, é meu filho!". Divertido, olhei de soslaio e discretamente constatei seu sorriso duplamente orgulhoso. E nada mais foi comentado. ----------------- Quando éramos crianças, mamãe gostava de eventualmente dedilhar um violão e com sua voz pequena porém afinadinha, cantar para nós modinhas, cantigas de roda e canções folclóricas - e ficava muito feliz com nossa atenção. Crescemos, casamos, nos dispersamos e nunca mais apareceu uma oportunidade de a ouvirmos cantar. Alguns anos depois estávamos todos de certa forma reunidos de novo, morando à sua volta em Copacabana. Meu Pai morreu, e quando ela se recuperou do baque passou a cultivar um novo hábito, coerente com sua saudável curiosidade por tudo que se passava no mundo e com o prazer com que desfrutava da companhia dos filhos: lia o jornal diário atentamente e marcava artigos, notícias ou trechos de textos que despertaram a sua atenção, para reler em voz alta e comentar comigo nas visitas quase diárias que lhe fazia - e ficava muito feliz com minhas apreciações. Ao final desses encontros ela ficava na janela esperando até me ver sair do prédio, sorrindo e acenando, visivelmente contente. Eu caminhava até final da rua e antes de dobrar a esquina olhava de novo e lá continuava ela, sorrindo e acenando. ----------------- A doença intratável a atingiu logo após completar os oitenta anos, e evoluiu de forma rápida e felizmente indolor. Nunca saberemos se conhecia a extensão e o prognóstico, mas não se mostrava abatida ou revoltada, e estava otimista e alegre no sábado que antecedeu sua internação para um procedimento paliativo, quando toda a família se reuniu para um adeus inconsciente. Na manhã de segunda feira deixei-a no hospital com minha irmã, à tarde fomos informados que sofrera um ataque cardíaco e estava em coma. À noitinha visitei-a no CTI e parecia dormir serenamente. Entendi e me despedi. De madrugada morreu em paz. ----------------- Sempre que caminho agora por aquela rua curta e estreita, atulhada de carros, olho instintivamente para aquela janela vazia, e triste apresso o passo. Antes de dobrar a esquina, porém, não resisto e olho de novo, e lá está ela sorridente a acenar - a velhinha na janela.

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