sexta-feira, 7 de abril de 2017

Um tiro na noite

Nos anos '60 só existiam telefones fixos, daqueles modelos pretos enormes, com discos. Eram raros, levava-se anos para conseguir uma linha e a Ilha do Governador, onde eu morava, juntamente com toda a Zona Oeste do Rio, era especialmente carente do serviço. Por outro lado, as favelas eram ainda incipientes - só cresceram e se multiplicaram nos governos Brizola - e não se tinha notícia de violência nem havia tráfico de drogas nos níveis atuais. Mas as sementes da Maré já estavam lançadas, e os barracos germinavam ao lado do acesso à Ilha via Avenida Brasil.
Certa noite voltava tarde do trabalho e ao passar em frente à favela um policial militar de revólver na mão pulou na frente do carro, sinalizando para parar. Era bem jovem, estava transtornado e chorava enquanto falava aos arrancos. A custo entendi que procurava ajuda para o companheiro de plantão no Posto Policial do local, que se ferira com um tiro na perna - da própria arma, explicou. Como não havia telefones para pedir socorro, queria que transportasse a vítima até o Hospital Paulino Werneck, na Ilha. Entrei com o carro pelo meio dos barracos até o Posto, onde ferido e colega se acomodaram no banco de trás, sendo que já haviam providenciado um garrote rudimentar na perna lesionada e sustado a hemorragia. ---------------------------- No trajeto em silêncio até o hospital fui pensando nos transtornos que o incidente me acarretaria, como depoimentos e audiências próprios do inquérito policial que certamente seria instaurado, mas logo me dei conta que os atarantados soldados não haviam feito perguntas nem anotações a meu respeito, ou do carro. Assim, logo que foram resgatados na porta da emergência do hospital e fiquei só, tratei de sair discretamente do local. Ao chegar em casa, aliviado e certo de estar livre das sequelas da ocorrência, acendi a luz interna do veículo e fui verificar se havia manchas de sangue na forração. Foi quando encontrei, esquecido em cima do banco, o revólver...
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segunda-feira, 3 de abril de 2017

Se essa rua fosse minha...

Em 1945 mudamos para uma via sem saída e sem trânsito na Tijuca, entre a rua Barão de Mesquita e a Avenida Maracanã. Seu terço central era ladeado por dois compridos e altos muros cegos opostos e antagônicos, de um lado o dos fundos dos galpões da Companhia Municipal de Limpeza Urbana, que abrigavam as cocheiras e os burros do então vigente serviço animal de coleta de lixo e do outro o do campus do Externato Marista São José, onde brilhavam sábios e mentes bem dotadas. Ali a garotada mais velha disputava animadas peladas até com turmas de outras ruas, fazia manobras performáticas com bicicletas e a criançada mais nova brincava de roda à noite, atirando o pau no gato e chamando o boi da cara preta, inocentes cantigas hoje contaminadas pelos preconceitos e a praga do politicamente correto. Éramos felizes e não sabíamos, com perdão para o chavão, e queríamos que essa rua fosse nossa para sempre mas a prefeitura fez desapropriações na ponta fechada e ela passou a ser mais um movimentado acesso ao estádio do Maracanã. Acabou-se o que era doce, e o tempo se encarregou de enfatizar as diferenças e a troca de cenários - os galpões da Comlurb evoluíram para um lindo complexo corporativo, com prédios modernos e jardins abertos ao público, enquanto o colégio regrediu e entrou em uma crise que durou anos. Um dos muros reciclou-se, seu par deteriorou-se, e a nossa antiga área de lazer foi invadida pelos carros, inviabilizando as peladas e as brincadeiras.
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Ao longo da vida vamos conhecendo pessoas que, por razões diversas, acabam balizando uma época e se tornam lembranças referenciais. Uma dessas figuras foi Oswaldo Diniz Magalhães, o pioneiro e nacionalmente festejado professor de educação física criador da Hora da Ginástica, programa de exercícios orientados pelo rádio que ficou no ar por 51 anos, mesmo após a chegada da TV e das academias. Ele morava no final da rua, era simples, simpático e tinha filhos participativos. Suas aulas seguiam roteiro de movimentos apresentados aos ouvintes em cartazes encontrados em bancas de jornais e no comércio, e o professor comandava as ações seguindo a sua numeração, com o ritmo marcado por um pianista. Como que confirmando os benefícios do seu exercícios, Oswaldo morreu com 93 anos, em 1998 e ganhou de seus alunos uma estátua instalada na Praça Saens Pena.
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No prédio em frente ao nosso residia uma família que se notabilizava por ser proprietária do controverso Parque Shanghai - um grande, variado e concorridíssimo parque de diversões então instalado na Quinta da Boa Vista. O casal de filhos seguia a cartilha das crianças classe média da época, assim como a nossa, ou seja, o rapaz estudava no Colégio Militar e a garota no Instituto de Educação. E era muito bonita. Apesar da nossa amizade, não me lembro de alguém ter sido agraciado com ingressos de cortesia para os brinquedos, o que talvez explique a longevidade do empreendimento, que sobreviveu aos seus criadores. E se esses não chegaram a ser uma referência pessoal para nós, o Parque certamente foi.
--------------- Nosso apartamento era de lado, nos fundos de um prédio pequeno de três andares, sem elevador. Entre ele e as instalações da Comlurb havia uma casa luxuosa, que pertencia a uma família de joalheiros. Incomodado com a construção vizinha, que entendia prejudicar a sua privacidade, o empresário construiu um muro que se elevava até a altura do parapeito das janelas do terceiro piso do prédio, o que prejudicou ventilação e iluminação dos apartamentos abaixo do nosso e amplificou os barulhos deles emanados, que soavam como que dentro de nossos cômodos. Certa feita instalou-se no térreo uma família, oriunda do Acre, que promovia animados saraus musicais a qualquer hora, o que seria um tormento não fosse o relativo bom gosto do repertório e a enorme simpatia do grupo, que deixava a porta aberta como um convite à participação. O chefe da família, que era um piloto militar, tocava bandolim, sua esposa cantava e fazia percussão com duas colheres de sopa, a filha mais velha era pianista e o garoto mais novo sacudia um chocalho; a estrela da companhia era Joãozinho, o filho do meio, da minha idade, que tocava acordeão e piano magistralmente. Com o tempo e o inegável talento, Joãozinho passou a frequentar com crescente sucesso programas de auditório, os circuitos de festas e merecidamente entrou nos fechados grupos de músicos renomados. Moraram ali por pouco tempo, e quando mudaram perdi o contato, mas anos depois descobri que Joãozinho crescera como artista e se tornara merecidamente uma estrela internacional. Joãozinho agora se chama JOÃO DONATO. -------------------------
Então, descobrimos os "taiobas", apelido dos bondes bagageiros que circulavam pelos bairros em horários preestabelecidos, fazendo o transporte misto de cargas e pessoas.
Havia uma linha cujos carros subiam até o Alto da Boa Vista, fazendo ponto final e retorno em frente ao portão de acesso ao Parque Nacional Floresta da Tijuca, na Praça Afonso Vizeu. Era fácil e barato embarcar com as bicicletas no taioba, curtir a linda e lenta subida até o parque, tomar um banho gelado na famosa cachoeira da Cascatinha, e na volta descer em alta velocidade a Avenida Edson Passos até a Muda, sem qualquer equipamento de proteção e sem dar uma só pedalada, a desmiolada motivação e coroação da aventura. Extasiados pela sensação de liberdade proporcionada pelo vento que nos fustigava o rosto e impulsionados pela adrenalina que eriçava o corpo, nunca consideramos os potenciais perigos da brincadeira zelosamente escondida dos adultos - e felizmente nenhum acidente jamais aconteceu - mas sempre houve a percepção que aqueles momentos insensatos marcariam as lembranças da nossa juventude.
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Minha bike era estilosa e chamativa: trazida diretamente dos Estados Unidos por um primo da Marinha e pintada de vermelho vivo, tinha pneus balão, freios contrapedal e um enorme guidão estilo chifre de touro Maverick, que além de assemelhá-la a uma moto era imbatível na ajuda à estabilidade. Era pesada, mas isso ajudava muito nas descidas e curvas dos caminhos em velocidade. Enfim, foi bom enquanto durou. Com a extinção dos bondes e a explosão do trânsito as aventuras de bicicleta se inviabilizaram. Vida que segue, as crianças cresceram e seus brinquedos se sofisticaram.








 

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