segunda-feira, 14 de dezembro de 2020

DESAPEGANDO

Estamos nos preparando para descer a Serra, doze anos após a ela ascendermos; afinal, tudo que sobe, desce, diz o ditado popular. Foram tempos maravilhosos que desfrutamos com alegria em uma cidade com natureza deslumbrante onde a felicidade foi uma companheira fiel, mas o tempo - ah, o tempo! - agora cobra o seu preço e é preciso aceitar que o nosso está acabando.  Devemos decidir o destino de coisinhas queridas que tantas lembranças suscitam e às quais nos apegamos, cientes que não se trata de uma mudança, em que as peças alteram seu pouso mas mantêm o pertencimento, trata-se do necessário desapego afetivo e efetivo, de um desmanche material definitivo. Não devemos deixar que a nostalgia ou pieguice atrapalhem a racionalidade do processo.
Olho em volta, para as despojadas paredes onde estão exibidas parte de nossas recordações. Em uma, das rosas clássicas caprichosamente pintadas em quadro de tons discretos por uma misteriosa dona Emma, sinto o suave aroma fantasioso e a maciez de suas pétalas, fazendo talvez um último resumo do cenário florido que estamos deixando; em outra, a alegre e colorida tela do pintor primitivo do Cantagalo, onde lavadeiras acolhem seus homens que retornam do mar, retrata a vivacidade da planície a que estamos retornando. Armários, gavetas e prateleiras guardam roupas de frio, mimos, louças e bugigangas queridas, cada qual com sua história e lembranças de origem carinhosa, que cumpriram seu ciclo. Seria insensato e injusto tentar salvar algumas dessas peças, ante a inegável homogeneidade e importância do todo e da sua carga emocional. Acabou, e pronto! É preciso desapegar e nos livrarmos das armadilhas românticas antes que se tornem dolorosas. E que ao subir aos Céus (que seja!), o façamos de mãos vazias
como recomenda o otimista recado japonês; afinal, na barca de Caronte parece não haver espaço para bagagem, mesmo onírica. 
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Há muitos anos, em uma solenidade inespecífica, sentou-se ao meu lado um indivíduo bem idoso, um tanto irrequieto. Após alguns minutos se remexendo em silêncio, voltou-se para mim e sentenciou que "após os oitenta, cada ano pesa como cinco". E tendo dito isso, foi-se  embora desfrutando minhas explícitas surpresa e espanto. Nunca esqueci o incidente, que rememoro agora como uma advertência ou premonição, afinal as perdas afetivas e materiais deste trágico ano que se encerra quintuplicaram em seu potencial devastador.

 

 


 

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