quinta-feira, 16 de julho de 2020

MEMÓRIAS: o Castelinho do Leme

 
O British American School (Colégio Anglo-Americano) foi fundado em 1919 pela educadora inglesa Margareth Coney, conhecida e idolatrada pelos seus alunos como "Miss Coney", casada com o cidadão italiano Ricardo Ligonto. O casal morava num palacete ao lado da Igreja de N.S. do Rosário, no bairro do Leme, com traços arquitetônicos semelhantes aos do templo, e que por exibir na fachada uma torre ficou referenciado na época  como o Castelinho do Leme.
Com o advento da Segunda Guerra Mundial, o Colégio sofreu uma intervenção federal em decorrência da nacionalidade de Ricardo Ligonto, e o casal foi afastado de suas atividades escolares. Também devido ao conflito meu Pai, professor do Anglo e oficial da reserva do Exército, foi convocado para o serviço ativo e fomos morar fora do Rio de Janeiro, frustrando meu sonho de prestar concurso para o Colégio Militar. Ciente do problema, Miss Coney generosamente se dispôs a assumir minha preparação para as provas, oferecendo recursos financeiros e hospedagem em sua casa; assim, com apenas nove anos de idade e um pouco atordoado com as novidades, fui agregado a um grupo multinacional poliglota integrado por um cidadão italiano amigo de Mr Ligonto, a inglesa Miss Fanny, professora aposentada do Anglo e um menino uruguaio da  minha idade, também estudante, com quem dividia o quarto. A rotina da casa e os empregados eram comandados nos moldes senhoriais ingleses por Dona Berta, governanta típica egressa do Anglo, que dirigia com mão firme e muito estilo as turmas da cozinha e a dos serviços, nesta incluídos o motorista carioca e o jardineiro português, que também cuidava da horta. Um microcosmo multicultural onde predominava a língua inglesa. 

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O Castelinho era uma edificação assobradada com um anexo nos fundos, encravada na metade inicial de um terreno estreito e comprido, que subia em platô pelo hoje famoso Morro do Chapéu Mangueira. O imóvel principal tinha à frente um caprichado jardim, com salas de visitas, de jantar e íntima no térreo, encimadas pela suíte principal e os quartos de hóspedes, e era marcado pela linda torre onde Miss Coney comandava jogos de salão e esquetes teatrais de que todos participávamos. No anexo, a biblioteca e o escritório de Mr. Ligonto, com seu lindo conjunto de confortáveis poltronas estilo Chesterfield forradas em couro, e uma mesa de bilhar lembravam um clube londrino clássico e se sobrepunham à garagem e dependências de empregados. Era ali que recebia eventualmente uns poucos e privilegiados amigos para conversas e tacadas, generosamente facultadas a mim e ao uruguaio, ainda que mal alcançássemos as bordas da mesa. No platô cultivava-se a horta caseira, irrigada por um riacho e guardada por dois respeitáveis cães Rottweiler.

Consta que o casal doou o imóvel para uma congregação religiosa sob cláusulas impeditivas de qualquer alteração em suas características originais, mas a flexibilização da legislação urbana e o recurso ao retrofit facultaram preservar o prédio principal e atender parte de uma demanda crônica do bairro: demoliram o anexo e terraplanaram o platô, substituídos por um discreto mas espaçoso edifício garagem de cinco andares. Foram-se os anéis, mas preservaram-se os dedos, enquanto o entorno sofria um vigoroso processo de favelização. A estada no Castelinho foi um dos mais felizes e proveitosos episódios de minha infância, sendo muito prazeroso saber que embora seu estado de conservação não seja o ideal, esse icônico imóvel foi preservado e encontrou aproveitamento compatível com a realidade local.
E, sim, graças à generosidade e carinho da inesquecível Miss Coney, que mais uma vez reverencio, passei no concurso! 
  

 

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Voltei ao Castelinho em julho de 2020, consciente da minha condição de único sobrevivente daquele grupo, mais de oitenta após deixá-lo pulsante de vida e encontrei cômodos frios e totalmente vazios de móveis e de gente, mas plenos de boas lembranças, e tive a forte sensação de estar compartilhando o passeio com os fantasmas daqueles com quem convivi. Não senti angústia nem tristeza naquele momento, apenas alegria por estar ali de novo em outra despedida, provavelmente definitiva. Dizem que não devemos retornar a lugares onde fomos felizes, mas a visita me deixou leve e mais uma vez agradecido aos milagres da vida e suas boas lembranças. Valeu!  




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