segunda-feira, 24 de maio de 2021

NASCI


Nasci no bairro carioca da Tijuca, onde também nasceram meus pai, avô, bisavô e filha - cinco gerações desde 1830, quando chegou ao Brasil o pai do meu bisavô, que era português.  Meu
 nascimento foi participado de forma bastante criativa, mediante um cartão contendo uma única palavra - Nasci - além do nome e endereço.   No decurso desta minha já longa existência sempre alimentei divertidos devaneios sobre as interpretações que esse inusitado recado na primeira pessoa, afirmativo, curto e objetivo teria suscitado aos contemporâneos, se teria sido percebido como uma inocente e inusitada comunicação, ou uma espécie de advertência velada à humanidade do tipo "nasci, vocês vão ter que me engolir"...

Há inúmeras  alternativas e interpretações para o que possa ser considerado uma vida bem vivida,  desde aquelas iluminadas pelo brilho do sucesso que se mede em dinheiro, vinho, mulheres e música às indigentes que se escoam opacas e sem perspectivas na trágica zona cinzenta onde prevalecem sangue, suor e lágrimas - e seus derivados. Entre essas situações limites caminha a maioria da humanidade, lutando para fugir da mediocridade, vencer preconceitos, superar desafios.

Fazendo um retrospecto de minha trajetória, reconheço ter vivido múltiplas vidas, sobrepostas umas, conflitantes outras, complementares algumas, traumáticas umas poucas, mas  fechado o balanço final o saldo me parece amplamente favorável. Reconheço também ter contado algumas vezes com a providencial ajuda do destino, que me apresentou às pessoas certas nos momentos incertos. Reconheço, ainda, que deveria agradecer à humanidade em geral por relevar aquela pretensa presunção inicial descabida e concordar em substituí-la pela humildade com que agradeço a 
cordial acolhida. Ao final, concluo, não cheguei a ser engolido nem repelido - fui assimilado.