quinta-feira, 2 de abril de 2020

DIÁRIO DA CRISE: confinados


Dois octogenários se virando nas onze, no pandemônio da pandemia: a cozinheira mora na Rocinha, está sujeita ao vai e vem dos transportes públicos nestes tempos incertos, e vai mais do que vem; a diarista mora na Cidade de Deus e tem sua mobilidade regida pelo pipocar dos tiroteios, mais frequentes na área que ela em nossa casa. Como não queremos filhos nem netos por aqui, pois têm mais o que fazer e a se precaver, na falta das auxiliares cuido da parte do café da manhã que envolve fritar ovos e montar sanduíches enquanto a vovó descola depois um almoço simples, com a indispensável salada.Sempre temos algumas coisas congeladas, principalmente peixe e cortes de frango. Em todos os turnos dividimos a lavagem das louças, mas não pego em panelas nem leiteira, pois tenho alergia a gorduras e isso não faz parte do meu contrato temporário de trabalho.Tudo isso para evitarmos restaurantes, sempre inconfiáveis nessas horas críticas. Compartilhamos a arrumação rápida da casa. À tarde faço algumas pesquisas, visito redes sociais e às vezes, como agora, escrevo e posto bobagens. De manhã a televisão está sempre ligada no canal de áudio que transmite música clássica, aquela que enleva e não atrapalha o bom andamento dos serviços. Filmes e séries vemos à noite, nos canais e aplicativos fechados. Às vezes divergimos por alguma bobagem, evidentemente, mas sempre temos o prazer da conciliação. E assim vamos desfrutando a feliz quarentena que já dura quatro décadas.
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Somos bons leitores seletivos, gostamos de contos policiais que distraem e ajudam a passar o tempo, especialmente agora que as horas de sono escasseiam. Já passeamos mais de uma vez pelas obras completas dos mestres do gênero, Agatha Cristie à frente, e visitamos autores anônimos perdidos nas revistinhas da nossa juventude, com destaque para a coleção Mistério Magazine, de Ellery Queen. Em outubro passado fiz uma pesquisa nos sebos on-line Estante Virtual e Livraria Traça e comprei a preço de banana 32 volumes usados, entre eles algumas raras antologias de contos policiais, que estamos apreciando nas madrugadas insones,. Noves fora o trabalho de restauração de alguns exemplares, foi uma feliz antevisão de soluções divertidas para amenizar o atual desconforto social.
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Como nem tudo são espinhos, durante toda essa confusão uma data festiva comemorada a dois por recomendação da OMS:  meu aniversário de 86 anos!



DIÁRIO DA CRISE: a hora da ginástica


Ao longo da vida vamos conhecendo pessoas que, por razões diversas, acabam balizando uma época e se tornam lembranças referenciais. Uma dessas figuras foi Oswaldo Diniz Magalhães, o nacionalmente festejado professor de educação física que em 1932 criou a Hora da Ginástica, programa de exercícios orientados pelo rádio que ficou no ar por 51 anos, mesmo após a chegada da TV e das academias. Suas aulas pioneiras seguiam o roteiro de movimentos apresentados aos ouvintes em cartazes distribuidos em bancas de jornais e no comércio, e o professor comandava as ações na rádio seguindo a sua numeração, com o ritmo marcado ao vivo por um pianista. Como que confirmando os benefícios do seu exercícios, Oswaldo morreu com 93 anos, em 1998 e foi homegeado por seus seguidores com uma estátua erigida na Praça Saens Pena.
Nestes tempos de confinamento em que ressurgem na TV programas para condicionamento físico em casa, é impossível não lembrar e reverenciar essa figura singular, antes tão celebrada e hoje um tanto esquecida.
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Conheci pessoalmente o professor Oswaldo Diniz Magalhães em 1945, quando nos tornamos vizinhos numa pacata rua sem saída na Tijuca, junto à Praça Saens Pena onde mais tarde seria homenageado. Já era uma celebridade na época mas continuava simpático e atencioso, assim como o filho, um pouco mais velho que a média da nossa turminha de então, mas que às vezes participava das nossas peladas. Mas o que verdadeiramente deslumbrava a molecada era o seu carro, um raro, lindo e monumental Lincoln Zephir V12, equipado com a mais moderna tecnologia da época como portas sem maçanetas e vidros com levantadores hidráulicos, em que certa feita nos ofereceu memorável carona em curto passeio pela própria rua. 





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quarta-feira, 1 de abril de 2020

DIÁRIO DA CRISE: é dando que se recebe

Estamos confinados, em quarentena, desaconselhados de sair às ruas sem máscara e sujeitos a outras restrições. Para quem tem recursos tecnológicos e financeiros, quase tudo pode ser conseguido por telefone ou aplicativos, de comida a remédios, sem necessidade de se expor externamente, mas para a  maioria das pessoas essa situação pode ser limitante ou excludente. Discute-se com argumentos conflitantes e sob as óticas sanitária e econômica a conveniência de afrouxar ou não as restrições,  tendo como pano de fundo subliminar a indisfarçável preocupação com um possível descontrole social fomentado pela fome e suas sequelas. A fome, diz-se, é má conselheira e multidões carentes, sabe-se, são imprevisíveis e manipuláveis; juntando-se as duas condições teremos formada a chamada tempestade perfeita.
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Em agosto de 1942 o Brasil declarou guerra às nações do Eixo - Alemanha e Itália - após ataques de submarinos alemães a navios brasileiros que causaram mortes e colapso na navegação mercante e crise no abastecimento em terra, com racionamento de combustíveis e consequente escassez de alimentos. Além de enfrentar restrições ao consumo, a população brasileira era orientada sobre o uso de máscaras contra gases enquanto o resto do mundo, como agora, se alarmava com notícias sobre proliferação de micróbios vindos da China!  Eu tinha oito anos na época, ouvia as conversas, via a movimentação atípica e sentia que algo estranho estava acontecendo quando minha mãe reclamava dos preços e das poucas opções de víveres.

Morávamos então no Grajaú, num imóvel amplo com jardim e quintal, e na casa ao lado residia uma família alemã que pouco falava português, um casal com dois filhos na minha faixa etária, com quem costumava brincar. Quando estourou a notícia da declaração de guerra, uma pequena multidão inconsequente e raivosa postou-se na calçada vizinha vociferando insultos e palavras de ordem, ameaçando a família e tentando depredar o imóvel, e embora contidos permaneceram alguns dias por lá fazendo muito barulho e encurralando os moradores. No terceiro dia de confinamento deles minha mãe, preocupada com a possível fome das crianças,  juntou todos os alimentos que tínhamos em casa, fez um farnel, e desafiando os manifestantes entrou comigo no quintal da casa deixando as provisões na porta dos fundos, de onde foram avidamente recolhidas. Dois dias depois as autoridades apareceram e evacuaram em segurança a aterrorizada família.
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Passadas tantas décadas os papéis se inverteram e aqui estamos nós, igualmente confinados, usando máscaras, ameaçados por um virus vindo da China e recebendo ajuda solidária para subsistir,  torcendo que as autoridades sejam sensatas e capazes de encontrar soluções que impeçam a formação de uma tempestade perfeita.  

 

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