segunda-feira, 9 de março de 2020

DIÁRIO DA CRISE: cartas na mesa

Numa época em que predominam os meios digitais de comunicação, foram destaque na imprensa as cartas de amor enviadas da Alemanha e México por Olga Benário a seu marido, o líder comunista Luiz Carlos Prestes, então preso no Brasil, que teriam sido encontradas no lixo de Copacabana por um catador de papéis. Após trocarem de mãos, foram oferecidas em hasta pública  mas acabaram devolvidas à família por decisão judicial, sendo notável que tenham sido mantidas em bom estado e sobrevivido intactas durante a intrigante jornada desde sua expedição e recebimento. Impressiona também que Olga Benário, mesmo submetida às agruras da prisão e ao longo afastamento do seu amado, mantivesse viva até a morte a afeição não muito correspondida, sabe-se hoje, pelo líder comunista. 

Também repercutiu na imprensa o leilão de uma polêmica carta manuscrita em 1954 por Albert Einstein, dirigida ao filósofo judeu alemão Eric Gutkind, conhecida como "Carta Divina", em que questiona a existência de Deus, duvida da veracidade da Bíblia, contesta pretensa superioridade do judaísmo sobre outras religiões e desfaz da crença de serem os judeus "o povo escolhido". Foi vendida por mais de R$ 11 milhões.

Nessa mesma linha teológica, ressurgiu entrevista do físico inglês Stephen Hawkings em que também afirma descrer da existência de Deus, e repete sua convicção que “cada um de nós é livre para acreditar no que quiser, e é minha opinião que a explicação mais simples é: Deus não existe. Ninguém criou o nosso universo, e ninguém dirige o nosso destino. Isso me leva a uma profunda compreensão de que provavelmente não há paraíso nem vida após a morte. Temos essa vida única para apreciar o grandioso design do universo e, por isso, sou extremamente grato”.
Em comum a ambos o ceticismo religioso, até certo ponto compreensível no caso de Hawkings, dada sua dilacerante jornada terrena.
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Quanto tempo dura e como se expressa o amor em cenários virtuais? Nesses tempos, minha mulher é uma rara figura que lê, avidamente, livros. Em papel. E há anos me envia amorosas cartas, bilhetinhos e cartões em datas festivas, ou não, também em papel, sem que para isso tenha sido necessário ser presa ou deportada. Talvez um ou outro desses manuscritos exponha desacertos ou um problema pontual, faz parte. Mas durante as mais de quatro décadas de vida em comum, nunca frustrou minha expectativa nessas ocasiões, nem mesmo nos tempos atuais quando nossos sentidos começam a esmaecer e a caligrafia a falhar; diminuem os textos, mas não o afeto. Ao longo dos anos guardei carinhosamente essa correspondência numa caixinha e a ela às vezes recorro, como agora, nos momentos de insônia refratária aos esforços hipnóticos da programação televisiva das madrugadas, em tempos de quarentena que também nos remete às ações divinas. Como uma coisa puxa outra, minha correspondência pessoal reavivou as lembranças sobre outros afetos, dúvidas ou contestações, e as paixões e ceticismo de Olga Benário, Einstein e Hawkings, cada qual em seu quadrado e com sua idiossincrasia, se juntaram aos meus fantasmas das madrugadas.



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Sobre idosos e disposições finais


Fui encaminhado à antessala do centro cirúrgico, no final de um longo corredor ladeado por quartos de portas abertas, onde se viam idosos adormecidos, mantendo no rosto cones de plástico de auxílio à respiração. Uma cena perturbadora e triste que estranhamente me lembrou o peculiar carnaval de Veneza, marcado por patéticas máscaras dotadas de enormes bicos, que pretendem expressar alegria mas são apenas melancólicas. Às vezes, sinistras. E que evocam também o equipamento usado mais remotamente por gladiadores para proteger o rosto, quando em luta pela vida nas arenas. São situações diferentes em cenários diversos, mas voltadas para um objetivo comum de difícil consecução, dadas as circunstâncias - a sobrevivência.
Evoé, Momo! Morituri te salutant.




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A enfermeira, simpática, pediu:
- Senhor, pode retirar e me entregar a prótese.
- Que prótese?
- Os dentes, a dentadura, senhor.
- São naturais, querida.
- Sei ...
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O ano de 2017 foi marcado pela promulgação da lei que criou uma nova classe de idosos, a dos velhos preferenciais - aqueles que têm mais de oitenta anos. Não é nada, não é nada, não é nada mesmo e acho que os idosos carentes iriam preferir outro tipo de atenção à prioridade nas filas. Seja como for, o assunto suscitou algumas reflexões ligadas ao quesito velhice e em especial ao tema indesejado, mas inescapável, de como enfrentar e amenizar as sequelas gerais da visita amarga da Velha Senhora. Com esse enfoque ganha espaço na sociedade esclarecida a figura do testamento vital - documento feito enquanto você está consciente das suas decisões e que especifica quais são os tratamentos e procedimentos aos quais deseja (ou não) ser submetido em uma situação terminal, tudo abordado com clareza e objetividade no texto sugerido.
Vamos viver e desfrutar a vida com alegria e encantamento, enquanto nos for concedida essa benção, mas sem descuidar dos procedimentos capazes de humanizar seus nem sempre amenos desdobramentos finais.


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A ciranda, o ovo e a galinha


A ciranda é uma dança de roda popular em Pernambuco, em que os participantes dão-se as mãos, cantam e evoluem em círculos concêntricos, como elos de ondulantes correntes humanas. Aproximando desconhecidos em espontânea manifestação de alegria e solidariedade implícita, tem o dom de unir e nivelar pessoas em gozo de efêmera felicidade coletiva.


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Até recentemente coexistiam na Avenida N.S. de Copacabana dois tradicionais restaurantes populares, um em cada lado da via - o Cirandinha, cujo nome nenhuma relação explícita tinha com a dança nordestina e o Gourmet 280, em frente, um misto de padaria, lanchonete e restaurante self-service. Mãos metaforicamente dadas, eram elos comerciais da cada vez menor ciranda de ícones da história de Copacabana e tinham como referência em comum o ovo e a sua, digamos, descendência. Admitindo-se que ele nasceu antes da galinha...
O Cirandinha, bem mais antigo, ocupava uma loja estreita e comprida com pequena lanchonete na entrada, onde as vitrines do balcão em formato de ferradura exibiam, além dos cansados salgadinhos engordurados de boteco - coxinhas, croquetes, rissoles e empadas - a especialidade da casa, que eram os ovos cozidos descascados envoltos por crosta à milanesa, que logo me conquistaram pela praticidade. Fui consumidor fiel por algum tempo até que os donos, emparedados pela estagnação empresarial do negócio, jogaram a toalha e o local se transformou em mais um apertado e anódino mercadinho. Soltou-se uma das mãos e com os ovos foi-se mais um elo da ciranda gastronômica popular de Copacabana.


Já o Gourmet 280 ocupava uma loja bem maior, dividida entre lanchonete e padaria interessantes pela variedade e qualidade dos seus produtos, além de inexpressivo porém movimentado restaurante a quilo. Era mais novo e moderno e tinha como referência na lanchonete, a preço camarada, uma exuberante sobrecoxa de frango empanada que valia por um almoço e brincava ser a evolução natural do petisco do Cirandinha.
Mas logo outras mãos se soltaram, e o Gourmet deu lugar a uma farmácia, mais uma. O ovo, que nasceu primeiro do outro lado da Avenida, e antecedeu o frango, gerou desta vez mais uma asséptica galinha dos ovos de ouro.

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