sexta-feira, 29 de maio de 2020

QUARENTENA: repeteco

A minha infância querida, que os anos não trazem mais, aconteceu nos anos trinta no aprazível bairro carioca do Grajaú. Morávamos numa ampla casa de dois andares com quintal, árvores e canteiros na esquina de duas ruas tradicionais e lá iniciei meus estudos na democrática  e socialmente integrada escola pública, com boas e dedicadas professoras. Havia atividades cívicas, a bandeira era hasteada, cantávamos o hino nacional e outros em datas festivas, e até  comportadamente desfilávamos pelas ruas em alguns desses eventos, e em particular lembro os adoráveis passeios na baratinha Ford do meu pai, sentadinho naquele banco ao ar livre que se abria após a cabine.

                                     

O supremo mandatário da vez chamava-se Getúlio Vargas e havia chegado lá através de um golpe; nenhuma novidade, exceto que  nos reencontraríamos mais tarde a bordo de outra ruptura institucional e depois mais outra, desta feita com contornos trágicos. O mundo enfrentava uma guerra que apesar de total ainda não havia nos atingido diretamente, mas as doenças infanto-juvenis ainda apresentavam seus cartões de visita em uma triste realidade: não existiam vacinas nem antibióticos para prevenção ou cura e as infecções faziam a festa macabra.
Convivíamos com surtos de sarampo, catapora, caxumba, rubéola, bronquite, pneumonia etc. e  horror dos horrores! a poliomielite, a temidada paralisia infantil - correndo por fora a praga dos piolhos, intermitente e insidiosa nas escolas em geral. E na falta de vacinas se tentava, como agora, prevenir os surtos com o isolamento social. Também não funcionou, peguei as mais comuns - todos pegaram - e sofri com os bichinhos capilares. Discutiu-se a tal imunidade de rebanho, mas acho que acabei desenvolvendo a hoje tão falada imunidade plasmática, já que nunca mais contraí doença infecciosa. E a casa do Grajú também sobreviveu a tudo isso, embora tenha amarelado...


Transcorridas tantas décadas e após sobrevivermos a guerras externas, golpes internos, pandemônio politico-institucional, impedimentos presidenciais, corrupção desenfreada em todos os escalões e vencer epidemias da gripe suína, doença da vaca louca e esquadrilhas de mosquitos infectantes, estamos recorrendo mais uma vez ao velho isolamento social para tentar deter o avanço de pandemia sanitária carente de vacina e tratamento confiável enquanto se rediscute a teoria da imunidade de rebanho.E também como nos velhos tempos, tenta-se usar o plasma de infectados para criar barreira imunológica paliativa enquanto a vacina não vem.
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Segundo Lavoisier, na natureza nada se perde, nada se cria, tudo se transforma Ou se copia, na versão levadinha. A última novidade científica é a imunidade cruzada, que consiste na capacidade de alguns dos linfócitos envolvidos numa resposta adaptativa no passado em reconhecer sequências de um vírus, bactéria ou agente infeccioso e ser capaz de identificá-las no futuro em outro agente infeccioso. Trocando em miúdos e simplificando, aventa-se que quem sobreviveu ao sarampo, por exemplo, pode ter adquirido uma imunidade cruzada capaz de replicar uma resposta positiva contra o corona virus atual, já que segundo o estudo, eles são vários mas pertencem a uma mesma família. Será?


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