sábado, 30 de março de 2019

Chovendo no molhado

Sábado chuvoso de Carnaval. Sem motivação para enfrentar a chuva miúda e as poças na calçada, desisto do café na padaria, improviso alguma coisa em casa e ligo aleatoriamente a televisão. Está rolando a parte final do interessante programa GloboNews Literatura - Cidades Literárias - Londres, apresentação de Rodrigo Carvalho, abordando passeios guiados por locais naquela cidade frequentados por grandes escritores ou relacionados com seus escritos. Lindos pubs centenários, maravilhosas grandes livrarias e uma deliciosa minibiblioteca pública onde se pode trocar livros livremente, instalada numa daquelas típicas e apertadas cabines telefônicas inglesas. O guia inglês descreve o que há de interessante nos locais, lê trechos das obras citadas com impecável sotaque londrino, e bebe! - bebe, talvez em memória dos homenageados, hectolitros de cerveja quente e sem espuma, servida em robustas canecas de vidro. Grande programa!  


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De volta à cabine telefônica, o apresentador brasileiro decide levar um volume e mostra seu título: "Sailing Alone Around the World" (Sozinho ao Redor do Mundo, na versão brasileira), de Joshua Slocum. Gostei. Li esse livro mais de uma vez, fascinado pelos deliciosos relatos das aventuras do escritor, desaparecido no mar em 1909, e estive com meu exemplar em mãos pouco antes, quando remanejava livros esquecidos em uma estante. Na ocasião lembrei ter sido apresentado ao navegante e sua obra em uma tradicional livraria de Copacabana, em outro Carnaval, quando procurava uma literatura leve para me distrair durante o período festivo. Soube agora que a loja em questão entregara as chaves, abatida pela crise instalada no setor, sendo provável que ali se instale mais uma farmácia para vender remédios para o corpo em detrimento de alimentos para a alma. Tristes tempos.
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Dias depois, em outra manhã chuvosa, leio a crônica em que Joaquim Ferreira dos Santos relembra a escola de sua infância e menciona a coleção "Tesouro da Juventude", uma obra em 18 volumes considerada a mãe de todas as enciclopédias. Publicada pela primeira vez em 1920, pela Editora Jackson e reeditada em 1958, o Tesouro da Juventude, editado por W. M. Jackson, Inc., com sede em São Paulo, era obra originalmente inglesa. Descrevia-se como  "Encyclopedia em que se reúnem os conhecimentos que todas as pessoas cultas necessitam possuir, oferecendo-os em forma adequada para o proveito e entretimento (sic) dos meninos." Com introdução de Clóvis Beviláqua, para atestar a qualidade, possuía um texto admirável, e a seleção de temas e autores apontava para uma comissão editorial, de constituição não revelada, de alta categoria.


A edição de 1958 resultou de um fantástico trabalho de atualização de verbetes num período de grande evolução humana em todas as áreas e sobretudo de revisão ortográfica, que demandou dois anos para ser concluído sob a coordenação do professor Luís de Abreu Paula Freitas, meu pai. De uma forma ou de outra, foi um Carnaval de boas lembranças.  



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segunda-feira, 25 de fevereiro de 2019

Plus que ça change...

Nasci no remoto 1934 numa tradicional rua da Tijuca, duas semanas depois do Carnaval, quando ainda ecoavam nas rádios as marchinhas que brilharam no então chamado tríduo momesco, com destaque para "Linda Morena", de Lamartine Babo, que respondia a "Linda Lourinha", sucesso de Braguinha no ano anterior, e a inspirada "Cidade Maravilhosa", de André Filho, que acabou hino oficial da Cidade do Rio de Janeiro. Sendo que as duas primeiras, por falaciosas artes e idiossincrasias do politicamente correto estão sumidas dos registros e das ondas sonoras. Foi também o ano do primeiro dissenso carnavalesco e dos surtos de egos em flor quando a Mangueira, questionada campeã do desfile oficial patrocinado pelo jornal O País no Campo de Santana, recusou-se a participar do desfile alternativo organizado pelo jornal A Hora no Estádio Brasil, onde terminou vencedora por aclamação popular a escola Recreio de Ramos, que já tinha cacife mas ainda não tinha cacique.
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Na seara política, o destaque foi a promulgação da pouco conhecida e efêmera Constituição Federal de 1934, promulgada em 16 de julho pela Assembleia Nacional Constituinte, redigida "para organizar um regime democrático, que assegure à Nação, a unidade, a liberdade, a justiça e o bem-estar social e econômico", segundo o próprio preâmbulo. Consequência direta da Revolução Constitucionalista de 1932, que levou Getúlio Vargas ao poder, durou pouco: em 1937, o mandatário outorgou uma nova Carta que transformou o presidente em ditador e o Estado democrático em autoritário. Como se sabe, o mau exemplo frutificou.
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Desde então nada realmente mudou, o Carnaval continua suscetível aos humores e valores políticos e outros, e a política permanece sendo um carnaval de intrigas e dissensos. Cansado dessa mesmice, dos memes e dos mimimis, rasguei a minha fantasia, "dei gargalhada com tristeza no olhar" (*) e resolvi pedir música - um tango argentino!
(*) Rasguei a minha fantasia, Lamartine Babo
 



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segunda-feira, 18 de fevereiro de 2019

A morte que cai bem

Fui submetido a um exame para avaliar cirurgia que tratou uma lesão intestinal. Durante os intermináveis minutos que antecederam o procedimento, deitado numa desconfortável maca e recebendo soro na veia num ambiente glacial, meditei sobre o inevitável momento da morte, se sua chegada seria com ou sem aviso prévio, se minha idade incentivaria os chamados de Jesus, e brinquei comigo mesmo se funcionaria, nesse caso, responder "aqui não tem ninguém com esse nome"...
Transferido para o centro cirúrgico, o anestesista informou seus próximos passos com a sutileza e empolgação de uma aeromoça divulgando os recursos de salvatagem do avião em pane, e disse que iria me apagar. Apagou.
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Acordei em outra maca, num local mais quentinho e logo me sentaram numa poltrona onde aguardaria o resultado do exame. Desta vez sem soro, mas com fraldas - geriátricas, acho. Enquanto esperava, ainda meio atordoado pela anestesia, retornei aos pensamentos anteriores e percebi haver passado por uma experiência interessante, um episódio de quase morte. Entre o momento em que o apagão se concretizou e o despertar, não senti transição entre lucidez e inconsciência, não ocorreu gradação de luz ou pensamento, e nenhuma narrativa ou lembrança aflorou, como aconteceria, segundo se especula. Estava atento e simplesmente submergi. No nada.
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Tenho procurado respostas para o ritual da derradeira passagem, mas só encontro perguntas; tenho buscado certezas e só encontro dúvidas. Mas me conforta a expectativa, bastante crível e confortável, que as coisas se passem desse jeito. Fui submetido a um exame para avaliar cirurgia, que confirmou estar tudo bem, e acabei abrindo os olhos para outra realidade, que a qualquer momento me ajudará a melhor fechá-los. Em paz.

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