quarta-feira, 1 de abril de 2020

DIÁRIO DA CRISE: é dando que se recebe

Estamos confinados, em quarentena, desaconselhados de sair às ruas sem máscara e sujeitos a outras restrições. Para quem tem recursos tecnológicos e financeiros, quase tudo pode ser conseguido por telefone ou aplicativos, de comida a remédios, sem necessidade de se expor externamente, mas para a  maioria das pessoas essa situação pode ser limitante ou excludente. Discute-se com argumentos conflitantes e sob as óticas sanitária e econômica a conveniência de afrouxar ou não as restrições,  tendo como pano de fundo subliminar a indisfarçável preocupação com um possível descontrole social fomentado pela fome e suas sequelas. A fome, diz-se, é má conselheira e multidões carentes, sabe-se, são imprevisíveis e manipuláveis; juntando-se as duas condições teremos formada a chamada tempestade perfeita.
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Em agosto de 1942 o Brasil declarou guerra às nações do Eixo - Alemanha e Itália - após ataques de submarinos alemães a navios brasileiros que causaram mortes e colapso na navegação mercante e crise no abastecimento em terra, com racionamento de combustíveis e consequente escassez de alimentos. Além de enfrentar restrições ao consumo, a população brasileira era orientada sobre o uso de máscaras contra gases enquanto o resto do mundo, como agora, se alarmava com notícias sobre proliferação de micróbios vindos da China!  Eu tinha oito anos na época, ouvia as conversas, via a movimentação atípica e sentia que algo estranho estava acontecendo quando minha mãe reclamava dos preços e das poucas opções de víveres.

Morávamos então no Grajaú, num imóvel amplo com jardim e quintal, e na casa ao lado residia uma família alemã que pouco falava português, um casal com dois filhos na minha faixa etária, com quem costumava brincar. Quando estourou a notícia da declaração de guerra, uma pequena multidão inconsequente e raivosa postou-se na calçada vizinha vociferando insultos e palavras de ordem, ameaçando a família e tentando depredar o imóvel, e embora contidos permaneceram alguns dias por lá fazendo muito barulho e encurralando os moradores. No terceiro dia de confinamento deles minha mãe, preocupada com a possível fome das crianças,  juntou todos os alimentos que tínhamos em casa, fez um farnel, e desafiando os manifestantes entrou comigo no quintal da casa deixando as provisões na porta dos fundos, de onde foram avidamente recolhidas. Dois dias depois as autoridades apareceram e evacuaram em segurança a aterrorizada família.
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Passadas tantas décadas os papéis se inverteram e aqui estamos nós, igualmente confinados, usando máscaras, ameaçados por um virus vindo da China e recebendo ajuda solidária para subsistir,  torcendo que as autoridades sejam sensatas e capazes de encontrar soluções que impeçam a formação de uma tempestade perfeita.  

 

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