sexta-feira, 8 de janeiro de 2021

REVEILLON DA PANDEMIA

 Em dezembro de 1980 nos casamos e alugamos um pequeno apartamento na Avenida Atlântica, no Leme. As nossas janelas, no quinto andar, emolduravam um trecho da praia e a Pedra do Leme, então já adornada com o perigoso Caminho dos Pescadores. Duas ruas mais atrás, do altar-mor de sua igreja conventual enriquecida por lindos vitrais figurativos, a Virgem do Rosário velava pelos moradores do bairro. Em março de 2000 compramos um apartamento maior, na mesma avenida, a poucos metros da igreja sede da paróquia de Nossa Senhora de Copacabana e Santa Rosa de Lima. De comum aos dois imóveis, o fato de estarem no raio de ação da proteção oferecida pelos respectivos santos e orixás. Foram quarenta anos de praia, literalmente, desde a virada do ano em que pisamos pela primeira vez na areia então escassamente povoada do Leme, visitamos os terreiros improvisados e ao som ritmado dos atabaques e dos cânticos da umbanda recebemos no rosto e nas narinas a fumaça e o odor dos charutos fedorentos com que nos purificavam as mães e pais de santo. Com tempo constatamos a total ocupação dos mesmos espaços pela multidão crescente e extasiada que reverencia a música popular e o estrondoso brilho dos fogos de artifício e por um tempo nos deslumbramos com a flamejante cascata prateada que descia pela lateral do hotel famoso, cuja fonte secou. E então veio a pandemia, e com ela um quase retorno às origens. A praia aqui em frente foi tomada pela escuridão, com poucas pessoas circulando, nada de sons e muito menos de fogos ou odores especiais. Dos rituais de outrora sobraram as vestes brancas e umas poucas oferendas. É estranho, como tudo o mais nesse ano estranho, estarmos a sós e vermos nossa calçada deserta, pela primeira vez em todo esse tempo. Os vizinhos sumiram, as visitas evaporaram, e a família se fragmentou em assépticas chamadas de vídeo, filhos, netos e bisnetos em seus quadrados distantes; na verdade, um cenário cujo impacto decorreu da longa quarentena. Finalmente, nos damos conta que este e os derradeiros anos vindouros poderão ser os melhores do fim das nossas vidas, se devidamente administrados. Em seus votos festivos as pessoas se desejam muita luz, e ela nunca foi tão necessária como agora, quando parecemos vagar num túnel às escuras. Agradecemos aos santos e divindades da nossa jurisdição que têm se esforçado para iluminar nosso já longo caminho, cientes de que só temos essa vida para viver, o que pretendemos continuar a fazer da melhor forma possível.

(Foto Marcio Negrão)

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